“Basicamente você vai criar uma realidade paralela na sua cabeça, vai acreditar que tudo aquilo ali é verdade e vai agir como se fosse verdade. Você vai entrar em um universo paralelo e vai viver e agir para esse universo, acreditando que aquilo tudo é real e que você vai conseguir tudo o que você quer”. É assim que a crystal moon, usuária do Tiktok, descreve o comportamento de uma “delulu”, termo que é derivado da palavra “delusional” (delirante, em português) e que tem dado nome a uma nova linha de pensamento popular na rede social.
Segundo Karen Vogel, psicóloga e professora na The School of Life, organização global referência no desenvolvimento e na aplicação do autoconhecimento, essa tendência funciona como uma espécie de lei da atração, que diz que pensar em coisas positivas atrai coisas boas. “É como se fosse um treinamento da mente em que a pessoa produz um determinado tipo de pensamento e não permite que ideias aleatórias invadam sua consciência", explica Karen Vogel.
O interesse por essa abordagem tem crescido tanto que dados do Google Trends, mostram que o interesse pelo termo “delulu” tem crescido nos últimos 12 meses. Em 2023, as pesquisas por esse assunto cresceram 20 vezes em relação a 2022.
A aplicação desse jeito “delulu” de ser também tem ganhado adeptos. E é justamente em redes sociais como o TikTok, onde o tema tem viralizado, que podemos conhecer também algumas histórias sobre o seu uso. Uma delas é da gerente de vendas e criadora de conteúdo, Jasmine Cowell, de 30 anos. "A partir do momento em que você é tão desiludida a ponto de acreditar que nada vai abalar sua vida e que você vai sim alcançar qualquer coisa que você imagina, qualquer barulho externo que vá contra essa ideia, você simplesmente não escuta", diz ela que se considera “delulu das ideias”.
Em um vídeo publicado na plataforma, Jasmine também conta que usa esse tipo de mentalidade no trabalho, inclusive, em momentos em que precisa conversar sobre orçamentos. "Coloco o valor de acordo com o mercado, mas antes existia aquela voz na cabeça dizendo: 'ninguém vai te pagar esse valor'. Pensando ‘delulu’, eu falo, eu consigo", diz a gerente de vendas.
Para ela, a ideia de ser “delulu” é não colocar nenhuma limitação em relação à sua vida. "Se não está no meu controle ou se não acontecer, está tudo bem. Eu não vou ficar remoendo aquilo que não deu certo", diz.
A estudante de história Dulce Barcelos, de 22 anos, também faz parte desse movimento. "Eu fui fazer uma entrevista de emprego e não ei. Não consegui porque vai acontecer algo melhor ou porque se eu insistisse nisso, a minha vida ia levar um outro rumo. É essa a forma de reagir às coisas de um modo positivo. Imaginando que coisas melhores estão por vir", diz Dulce ao explicar como aplica a mentalidade “delulu” na sua rotina.
A jovem afirma que sofria muito quando as coisas não saíam como planejado, mas observou que depois de um tempo, algo muito melhor acontecia. Para ela, isso só ocorria porque aquela primeira coisa tinha dado errado. "Foi quando tive certeza de que às vezes não é a melhor opção sofrer quando as coisas saem do nosso controle", diz Dulce.
A romantização da própria vida, que também é algo pregado pelo movimento “delulu”, é aplicada na vida da jovem - e ela garante que isso tem ajudado. "Envolve se fazer presente no momento. Então, vou tomar meu café com calma, vou arrumar meu prato bonito, tirar uma foto, vivenciar aquele momento", diz Dulce.
Apesar disso, Dulce afirma tomar cuidado para não cair na armadilha da positividade tóxica, em que acaba reprimindo sentimentos considerados ruins, como tristeza ou raiva, e afirma que há realidades que não podem ser romantizadas. "Lembro de um comentário no meu vídeo que me marcou muito. A moça disse: 'como posso romantizar minha vida se acordo às cinco da manhã, sou mãe solteira, tenho dois filhos e trabalho o dia inteiro?' Precisamos pensar sobre isso também", diz Dulce.
Alertas
A psicóloga Mariângela Savoia alerta que é preciso tomar cuidado ao adotar o pensamento “delulu”, já que é perigoso fingir que está tudo bem e não aceitar que podemos ter sentimentos ruins. "Faz parte da vida sentir coisas negativas e é preciso aprender a regular as emoções, em vez de negá-las."
Para Karen Vogel, aprender com as frustrações é o que nos ajuda a lidar melhor com determinadas situações. "Se estou criando uma realidade paralela onde isso não existe, estou criando uma irrealidade e vivendo um conto de fadas", aconselha a psicóloga.
Neurocientista e mentor emocional e de relacionamentos, Thiago Porto pontua que é importante entender o que faz com que as pessoas adotem essa mentalidade, principalmente quando existe um foco em uma realidade que não existe. “A linha do pensamento positivo, da lei da atração, e várias outras que exploram o pensamento positivo costumam ter seus lados bons mais destacados, mas o lado perigoso não costuma aparecer muito e ele existe. Esse tipo de pensamento explora uma isenção de responsabilidade e até certo vício, porque essa neutralização das dores em troca de uma recompensa momentânea pode ser viciante”, ressalta.
Para explicar melhor o quanto esse tipo de comportamento pode se transformar em uma dependência e os riscos disso, o neurocientista faz um paralelo com o uso de drogas. “A pessoa está vivendo uma vida ruim, mas quando ela usa alguma substância e se sente bem, naquele momento em que ela está usando a droga, está tudo bem, mas depois ela vai ter que voltar para a realidade. Isso pode acontecer também estilo de vida como o ‘delulu’. Imagine: a pessoa está com problemas na vida dela, mas ela não se move e nem age para resolver, apenas começa a ignorar tudo. Enquanto ela faz isso, a vida está se desfazendo. Depois pode ser que a pessoa tenha um choque de realidade, assim como acontece com dependentes químicos, e ela vai olhar pra vida e falar ‘caramba, o tempo ou e eu não construí nada. Aquele negócio de positividade serviu para me manter bem durante aquele tempo, mas agora a vida tem que continuar e não estou pronta para seguir’”, exemplifica. “Não há nenhum embasamento científico ou técnico que explique que a vida dela vai melhorar simplesmente porque ela está se sentindo bem e está ignorando os problemas que ela deveria estar resolvendo”, reitera Porto.
A psicóloga Mariângela Savoia ressalta a importância da ação diante de problemas. "Quando as coisas dão certo, você pode pensar que foi por conta da força do seu pensamento. Não foi, foram suas ações que o levaram até lá. O pensamento por si só não o leva a lugar nenhum. São apenas suas ações que o fazem alcançar determinados objetivos", ressalta.
Thiago Porto reforça o coro, pontuando que é possível caminhar para uma positividade saudável e que ela parte, principalmente, da ação. “A pessoa tem que entender as regras da vida adulta para construir essa positividade real. Se ela está com um problema e o problema faz com que ela sofra, ela vai saber que para ficar bem ela vai ter que se comportar para resolver ou superar o problema. É desta forma que conseguimos de maneira sustentável viver uma positividade”, finaliza. (*Com Vitoria Pereira/FolhaPress)