Amina Welten Guerra é doutora em direito internacional e professora de direito internacional do Centro Universitário Ibmec BH
A sociedade internacional hoje vive um estado de coisas inconvencional.
No direito doméstico já incorporamos o conceito jurídico de um estado de coisas inconstitucional para nos referirmos àquelas situações em que se observam massivas, persistentes e generalizadas violações de direitos fundamentais, e o Estado é incapaz de enfrentá-las quer por omissões quer pela necessidade de reformas estruturais.
Paralelamente, na sociedade internacional hoje vivemos um estado de coisas inconvencional. Isto porque as regras que regem os sujeitos e atores na esfera internacional são, em grande medida ditadas pelos acordos, tratados e convenções internacionais. Na medida em que vemos uma série de generalizadas e persistentes violações destas regras internacionais estamos vivendo um estado de coisas inconvencional na sociedade internacional.
Tribunal Penal Internacional
Se é verdade que nem todos os Estados do mundo se engajaram em todas as regras deste jogo, a saber, por exemplo, o Estatuto de Roma, que estabelece o Tribunal Penal Internacional do qual não fazem parte nem China, Estados Unidos ou Israel, ou mesmo ao se pensar nos tratados de direitos humanos, dos quais nem todos os Estados do mundo fazem parte, uma coisa é certa: praticamente todos os Estados do mundo fazem parte da Carta de São Francisco, instrumento este que cria a Organização das Nações Unidas.
O sistema ONU, portanto, do qual, repita-se, faz parte praticamente todos os Estados do mundo, estabelece entre os seus propósitos e princípios, a cooperação entre os povos por meio de relações amistosas; a manutenção da paz e da segurança internacional por meio de ações que busquem a solução pacífica de controvérsias e a promoção e estímulo ao respeito dos direitos humanos.
Assim, no momento em que assistimos a uma sistemática, generalizada e massiva violação das regras sobre o uso da força no direito internacional, o desrespeito aos direitos humanos e a busca por diálogos pacíficos entre os povos, como mera sugestão diplomática, pode-se constatar um estado de coisas inconvencional.
A justificativa de muitos para tal quadro fático assenta-se na constatação de que a natureza da sociedade internacional é anárquica, isto é, não dotada de um poder central capaz de coagir os Estados a cumprirem o direito internacional.
Se isto é um fato, é preciso constatar, também, que o compromisso do jurista especialista em direito internacional é com um marco normativo próprio.
Em outras palavras, se as regras do jogo geopolítico acabam por operar levando em consideração outras variáveis e nuances, as regras do jogo jurídico são muito claras.
Como acadêmicos e profissionais do direito internacional, o nosso compromisso é com um modelo teórico-legal-normativo que não ceda à lógica geopolítica e que busque a promoção e o desenvolvimento da rule of law internacional. Não podemos ceder aos ditames da geopolítica, do jogo econômico ou do voluntarismo estatal para aceitar os recentes fracassos de um quadro normativo que floresceu e se consolidou durante séculos de história do direito internacional.