Se você procurar, vai encontrá-lo em vários lugares ao seu redor: de videoclipes de música pop às cerimônias de abertura e encerramento das Olimpíadas do Rio, ando até por propagandas de desodorante masculino. Mas ele está ainda mais perto. O vogue – estilo de dança caracterizado por braços ágeis que fazem linhas marcadas, ângulos precisos e movimentos velozes – está crescendo no mundo inteiro e encontrou em Belo Horizonte um polo para sua expansão, tanto no Brasil quanto na América Latina.
 
Pioneira na realização regular de batalhas do estilo com o duelo de vogue da já tradicional festa Dengue, realizada mensalmente desde o fim de 2013, a cidade vive um momento de efervescência dessa cultura com a segunda edição do BH Vogue Fever, na próxima semana (entre os dias 17 e 19). O festival promove workshops com referências internacionais da modalidade de dança e encerra com um grande “baile”, nos moldes dos que acontecem em Nova York, berço da expressão. 
 
FOTO: Bruna Brandão/Divulgação
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Momento do duelo de vogue realizado na edição do ano ado do BH Vogue Fever
 
A primeira vez que o mundo ouviu falar do vogue enquanto expressão foi em 1990, quando Madonna apresentou o movimento na música homônima. “Fale ‘vogue’ em alguma balada e qualquer um vai colocar as duas mãos espalmadas ao lado do rosto, no gesto característico do videoclipe”, observa o jornalista Pedro Nogueira, 28, um dos editores do site BH is Voguing, que reúne informações sobre o assunto aqui, no Brasil e no mundo.
 
Mas a origem é muito anterior a isso, remonta à época em que ser homossexual era crime nos Estados Unidos. Nos anos 1940, homens gays presos tinham como única fonte de entretenimento revistas de moda como a “Vogue”, e começaram a imitar as poses das modelos. “Dentro das prisões, sabemos que já havia batalhas de pose, mas mais tarde, nos anos 1970, essa prática foi incorporada à ‘ballroom scene’, uma subcultura LGBT na qual as pessoas de diferentes ‘houses’, como são chamados os grupos em que se reúnem como uma família, competem por troféus e prêmios em eventos chamados ‘balls’, ou bailes”, explica Tetê Moreira, 25, integrante do trio Lipstick, de dançarinas especialistas em vogue.
 
Desde que Madonna atraiu os holofotes para a prática e também graças à realização do documentário “Paris is Burning” (1990), de Jennie Livingston, que evidencia a “balroom scene” nos anos 1980, que o vogue vem ganhando o mundo – e isso vem acontecendo com mais intensidade nos últimos anos. Países como França e Rússia já têm cenas bastante estabelecidas nesse sentido. Itália, Japão, Holanda, Estônia, Ucrânia e República Tcheca também vêm se fortalecendo.
 
Chegada a BH
 
Em BH, o movimento começou quando o trio Lipstick, até então o único grupo do Brasil a estudar a modalidade, participou de um concurso de “dança no salto” no programa TV Xuxa, em 2012. Lá, elas conheceram o nova-iorquino Archie Burnett, 57, professor e dançarino que vivenciou a explosão do estilo na cena underground da cidade. 
 
Jurado da competição, ele se revoltou com o fato de elas não terem vencido, e começaram ali uma parceria. “Ele achou um absurdo, ficou indignado, e nos disse: ‘meninas, o que eu puder fazer para ajudar o trabalho de vocês eu farei. Sou seu padrinho’”, conta Tetê.
 
No início do ano ado, o trio ou um período em Nova York fazendo uma residência artística e vivenciando a “ballroom scene”, como é chamado o conjunto de festas no qual as disputas da dança acontecem. Na ocasião, foram hospedadas pelo próprio Archie.
 
Nesse meio tempo, o diretor e coreógrafo Guilherme Morais, 32, criou a festa Dengue e encontrou, nela, uma oportunidade para experimentar a proposta de promover um duelo de vogue na cidade, desejo que alimentava desde 2011, quando morou na Argentina e conheceu a dança e a cultura em que está inserida. “Eu comecei a procurar pessoas que poderiam dançar. Encontrei algumas e as meninas do Lipstick. A Tetê, inclusive, foi a primeira vencedora”, conta. “Foi um acontecimento, uma coisa impressionante, com grande poder de liberação e libertação, algo que me interessa muito como performer. Decidi que tinha que manter aquilo porque, enquanto produtor de dança contemporânea e improviso, vi que ali havia uma coisa muito viva”. 
 
Dali em diante, Dengue e Lipstick começaram a caminhar juntos e o trio se tornou jurado e atração da competição. De lá para cá, além da festa mensal, o duelo já foi realizado na Virada Cultural da cidade, no encerramento da edição deste ano do FIT e em parceria com o Duelo de MCs, além de, mais recentemente, na programação do festival Coquetel Molotov, tanto na edição de Belo Horizonte, quanto na do Recife, sem contar intercâmbios com eventos no Rio de Janeiro e em Brasília.
 
Internacional
 
No ano ado, a primeira edição do BH Vogue Fever, organizado pelo trio, além de trazer Archie Burnett pela primeira vez à capital, atraiu dançarinos de várias partes do Brasil. Houve também quem viesse do Chile, como foi o caso da chef de cozinha Martha Keller, 30, que na arena assume a personagem Tofu Quing. “Nós seguimos dançarinos que iramos pelas redes sociais para ver fotos e vídeos de suas apresentações e assim aprender e nos nutrirmos da cultura. Foi como conhecemos o trabalho do trio Lipstick”, conta. “Eu e os membros da minha house queríamos tomar aulas com professores estrangeiros e naquele momento era quase impossível que viessem a Santiago, então decidimos ir ao BH Vogue Fever”.

Depois de virem aqui, a “House of Keller”, da qual Martha faz parte, organizou o primeiro baile do Chile. “Conhecemos gente que gostava das coisas que aqui no Chile ninguém compreendia além de nós. Mesmo falando uma língua diferente da de vocês nós falávamos o idioma do vogue, que é universal”, diz. “Isso nos fortaleceu porque levamos tudo que havíamos aprendido para compartilhar com a galera daqui. Já organizamos vários bailes depois, vamos voltar este ano e sonhamos com o dia que nossos amigos brasileiros virão dançar com a gente”. 

Atrações internacionais

Lasseindra Ninja Nascido no sul da França, Xavier Barthelemi tem 30 anos e é responsável pela criação da cena de Vogue de Paris. Se apresenta no vogue como Lasseindra, membro da House of Ninja, de Nova York, onde conheceu a dança aos 15 anos. Protagoniza a batalha de vogue mais vista do Youtube, contra Inxi Moon, com cerca de 3 milhões de visualizações. 

Dashaun Wesley Um dos dançarinos de vogue mais famosos da atualidade, foi alçado à popularidade internacional depois de sua participação no programa “America’s Best Dance Crew”, da MTV. Participou também do corpo de baile da recém-terminada turnê ANTi, da cantora Rihanna. É famoso também como ‘commentator’, aquele que faz as rimas enquanto a batalha acontece e o fará em BH. 

II BH Vogue Fever

Workshops com Archie Burnett, Lasseindra Ninja e Dashaun Wesley. Qui. (17), das 19h às 22h15; sex. (18), das 15h às 18h30; e sáb., das 9h30 às 13h. R$ 370 (pacote, lote 2), R$ 200 (dia avulso). Academia A2 (r. Guaicuí, 660, Luxemburgo).

 
Festa Zodiac Ball. Sáb. (19), às 22h. R$ 30. (r. Ituiutaba, 339, Prado). Mais informações: www.bhisvoguing.com/voguefever

Muito além de movimentos

Mais do que uma modalidade de dança, o vogue é uma forma de resistência. As pessoas envolvidas com sua criação viviam à margem da sociedade. Eram, na maioria, gays ou transexuais, negros e latinos. Por isso, seus locais de sociabilidade eram bastante s, e os espaços da “ballroom scene” nova-iorquina eram os únicos em que eles podiam existir livremente.

É por isso que o fato de Belo Horizonte absorver uma cultura como essa representa mais do que pode parecer. “Acho fantástico que isso aconteça logo no nosso Estado, terra da ‘tradicional família mineira’, onde ainda há muito conservadorismo. Porque o vogue é esse berro, essa vontade de se expressar e de exigir respeito”, afirma Tetê Moreira, dançarina do trio Lipstick.

Por conta disso, a dança se apresenta como uma manifestação inclusiva, como explica a professora de dança do departamento de educação física da UFMG Isabel Coimbra. “Ela trabalha com a autoafirmação, porque não está preocupada com tipo físico, etnia, questões de gênero. Cabem o gordo e o magro, o negro e o branco, o gay e o hétero”, diz. “Me lembra muito o que disse o filósofo Roger Garaudy, sobre a dança ser um estilo de vida, um modo de viver”.

Na medida em que as pessoas podem simplesmente ser o que são, a professora acrescenta, há espaço também para o exagero. “É como se o raciocínio fosse ‘eu posso ser isso, então, serei mais ainda’. Daí surgem os movimentos exagerados com os braços, os tombos, e isso acaba fazendo com que eles desenvolvam muito as técnicas corporais, que são necessárias pra que os dançarinos se joguem no chão sem se machucarem, por exemplo”, afirma.

Ferramenta

Num país em que as desigualdades sociais são tão evidentes como o Brasil, o vogue se torna uma ferramenta ainda mais potente. “Em qualquer lugar onde haja injustiças, preconceito e violação dos direitos humanos, há trabalho a ser feito. E se um estilo de dança pode juntar pessoas sob o guarda-chuva do entretenimento e da alegria, a mudança já está acontecendo. Não precisa ser imediatamente e, em geral, mudanças sociais levam um longo tempo, mas já está mudando”, observa o dançarino e professor nova-iorquino Archie Burnett.

O autônomo Lázaro dos Anjos, 23, sente isso na pele. Interessado por vogue desde os 12 anos, quando assistiu ao documentário “Paris is Burning”, se surpreendeu positivamente ao encontrar outros praticantes do estilo na Virada Cultural de 2014. Daquele momento em diante, parou de dançar só em casa e se tornou frequentador assíduo dos duelos e um dos concorrentes com mais vitórias.

“Eu costumo ter muitas ideias, mas não tomo iniciativa, sou muito travado. Mas decidi que queria mudar e fui. Uma das minhas memórias mais vivas são a forma como me senti incluso”, lembra. “Por isso, não acho que os eventos de vogue em Belo Horizonte são simplesmente de dança, são grupos de diversidade”.

Ele, que é gay e já sofreu uma tentativa de assassinato só por estar na rua usando uma saia, chama atenção para os espaços de acolhimento que são criados. “Eu sou uma pessoa normal como qualquer outra, mas não tenho dias normais. Tenho dificuldade de encontrar emprego, preciso lidar com os olhares, risadas, agressões. Até o ato de ir à padaria é difícil para mim. Mas no vogue eu me sinto à vontade. As pessoas não olham pra mim com reprovação, mesmo se eu estiver de salto, peruca e maquiagem. Lá, quem estiver incomodado é que tem que sair”, diz.

Abrasileirado

Embora beba direto da fonte original, o vogue brasileiro tem suas especificidades, como observa o jornalista e um dos editores do site BH is Voguing Pedro Nogueira. “Como tudo o que fazemos aqui, absorvemos de uma maneira mais despretensiosa. Temos liberdade de fazer misturas, ainda que busquemos muito ar a fonte original e dominar bem a técnica, também fazemos com leveza, com uma outra criatividade típica do brasileiro”, comenta.

Em Recife, por exemplo, Nogueira diz ter conseguido perceber influências do frevo no modo das pessoas dançarem. “Em BH, eu percebo que as pessoas não têm medo de duelar sem saber a técnica. Se souberem fazer o que chamamos de ‘pombagirismo’ e estiverem com um look legal já é suficiente”, diz.

A própria proposta da festa Dengue tem a ver com experimentalismo, como assinala seu criador Guilherme Morais. “A gente preza mais por isso do que pela competição em si ou realmente saber quem é melhor ou pior”, afirma.

O vogue fora do nicho

Clipes Além do icônico “Vogue”, de Madonna, outras cantoras incluíram a dança em seus videoclipes. Willow Smith, em 2010, trouxe o vogue no vídeo de “Whip My Hair”. Azelia Banks e Fergie fizeram o mesmo, e até a banda indie Pillar Point convidou a artista Kia Labeija para estrelar o clipe da música “Dove” dançando vogue pelas ruas de Bogotá. A própria Madonna revisitou a dança na apresentação que fez durante a entrega do prêmio Brit Awards, em 2015.

Fora do eixo A publicidade também já percebeu as potencialidades do vogue e, no início do ano, a marca de desodorantes Axe lançou um comercial cujo conceito era de que cada um precisa procurar sua própria mágica e trazia um dos atores fazendo os da dança. 
 
Cerimônias E até nas Olimpíadas Rio 2016 o vogue apareceu, nas cerimônias de abertura e encerramento. Responsável pela composição coreográfica da cerimônia de abertura, a coreógrafa Deborah Colker foi apresentada aos os por seus dançarinos e na seção da cerimônia chamada “box city”. Na cerimônia de encerramento, quase ou batido, mas também houve uma alusão à dança. No vídeo do Japão, apareceu a dupla Aya Sato e Bambi, que foram recebidas no corpo de baile de Madonna, fazendo os movimentos.