Os movimentos ora rápidos, ora congelados, que reproduzem poses de divas da cultura pop, como Madonna, nas capas de revista, como as da “Vogue”, são, talvez, a expressão mais conhecida do ballroom, ou casa de baile – um movimento cultural que nasceu nos subúrbios de Nova York nos anos 1970, celebrando e dando protagonismo às pessoas pretas e à comunidade LGBTQIAPN+. Em território brasileiro, essa manifestação artística surge na segunda metade da década ada, quando foram formadas as primeiras “houses” do país, como são chamados os coletivos que funcionam como famílias afetivas dos participantes, que competem em balls (bailes) em diferentes categorias, como voguing, runway, face e realness.

Agora, quase dez anos após se estabelecer no Brasil, a cena do ballroom fluminense – que guarda íntimas conexões com a cena mineira, estando ambas entre as mais pujantes do país – ganha o seu primeiro documentário: o filme “Salão de Baile” (This is Ballroom), dirigido e roteirizado por Vitã e Juru. A produção é patrocinada pelo 2º Edital de Fomento ao Audiovisual da Prefeitura de Niterói - Fundação de Arte de Niterói (FAN), e coproduzida pela RioFilme, órgão da Secretaria de Cultura da Prefeitura do Rio, sendo apresentada como um mergulho no universo efervescente de uma comunidade preta LGBTQIAPN+ do Rio de Janeiro, que segue a trilha da cultura ballroom criada em Nova York.

A obra acaba de ser selecionada para o Festival Internacional de Documentários de Copenhague – H:DOX, na Dinamarca, onde será apresentada pela primeira vez ao público. No evento, o filme integra a programação da mostra “Song & Vision”, dedicada a música e outras expressões artísticas, estreando no dia 14 de março e sendo reexibido nos dias 15, 19 e 23 do mesmo mês. Curiosamente, o último documentário brasileiro apresentado nessa mostra, como lembra Vitã, foi “Miúcha, A Voz da Bossa-Nova”, em 2023. “É muito interessante pensar que, agora, a música brasileira e a cultura musical brasileira estão sendo representadas pela ballroom”, diz ela, entusiasmada com o convite. “Estamos muito felizes de representar o Brasil em um evento dessa importância”, completa.

Diretores querem que filme alimente o calendário ballroom

Enquanto celebram o convite para uma série de quatro exibições no H:DOX, um dos principais festivais com foco em documentários do mundo, Vitã e Juru fazem planos de continuar circulando em outras mostras de cinema, nacionais e internacionais, e sonham fazer do filme um instrumento que sirva, também, para alimentar o calendário de eventos da cena ballroom – algo que, inclusive, pode acontecer na estreia.

Foto de ball registrada no documentário 'Casa de Baile' ('This is Ballroom')

“Além da estreia no cinema, o filme vai ser exibido em um espaço que já é tradicionalmente ocupado pela ballroom da Dinamarca. Há, inclusive, o desejo de realizar uma ação com a cena de lá – mas ainda não sabemos se vai, de fato, acontecer mesmo. Depois, o filme ainda será exibido em outros dois espaços em Copenhague”, descreve Vitã, lembrando, que, desde o início, a organização do festival demonstrou o desejo de propor ações para além da exibição. 

“Quando chegou o convite, não foi só para a exibição, mas também para que fôssemos e levássemos mais uma pessoa, que representasse essa comunidade. No caso, a Idra Mamba Negra (performer, que assina a direção de arte do projeto ao lado de outras profissionais) também vai. Daí, mais que a exibição e de uma conversa sobre o documentário, teremos também uma performance dela”, explica, detalhando que, enquanto os diretores estão indo a convite do H:DOX, a artista terá suas despesas de viagem custeadas pelo Instituto Guimarães Rosa, do Ministério das Relações Exteriores, com apoio da Embaixada do Brasil em Copenhague. 

Pertencimento

“Para nós, é uma alegria ter esse apoio do governo já na primeira circulação do filme, sendo que, há poucos anos, com a gestão que tínhamos no país, isso seria bastante improvável”, reflete Juru. Ele contextualiza que, além de fazer parte da equipe do filme, Idra participa do festival também para falar da sua própria experiência no ballroom. “Ela é uma pessoa que mudou o RG dela, não só o nome, como também o sobrenome, adotando o nome da sua ‘house’. Hoje, ela assina Idra Maria Mamba Negra no RG, sendo ‘Mamba Negra’ o nome da família dela”, ressalta. “Para nós, essa é a história que melhor materializa essa ideia de um movimento que tem a ver com performance, com dança e moda, mas que também é um lugar onde há acolhimento, onde a pessoa pode se encontrar, se sentir pertencente”, diz.

Foto de performance registrada no documentário 'Casa de Baile' ('This is Ballroom')
Foto de performance registrada no documentário 'Salão de Baile' 

“E a Idra se tornou uma mãe, uma mãe de 17 filhos, de ventre muito fértil”, complementa Vitã. “Ela representa esse nosso desejo de fazer um filme que não fosse somente ‘sobre’ a cena ballroom, mas que fosse feito ‘com’ a cena ballroom, ‘com’ essa comunidade e ‘com’ essas pessoas”, assinala, lembrando que o projeto foi se transformando com o tempo. “No começo, a gente pensava em um filme sobre um baile. Enquanto a gente foi filmando, trazendo as pessoas e conversando com elas, a gente foi vendo que existiam outras demandas, outras necessidades. Surgiram depoimentos muito fortes, que não estavam necessariamente no projeto inicial. E a partir deles percebemos que as pessoas queriam contar suas histórias, registrar suas vivências não só performando, mas também em suas casas, em seus treinos”, descreve.

Vitã ainda conta que, em “Salão de Baile”, há também um exercício de fabulação. “Fizemos encenações com as performers daqui atuando como personagens históricos da ballroom, de forma que a gente pudesse falar desse ado, dessa história pregressa”, indica. “Para isso, a gente ficou pensando em como elas seriam e tivemos que fazer um exercício de fabulação porque não há muitos documentos sobre isso”, conclui.

Conexões

Ainda que não seja o foco do documentário, Vitã lembra que existem diversas conexões entre a cena ballroom fluminense e a mineira. Um elo que vem desde a introdução dessa manifestação cultural no Rio de Janeiro.

Como registrou uma reportagem de O TEMPO, em Belo Horizonte, o movimento começou quando o Trio Lipstick, composto por Maria Teresa Moreira, Paula Zaidan e Raquel Parreira, que era, até então, o único grupo do Brasil a estudar a modalidade, participou de um concurso de “dança no salto” no programa TV Xuxa, em 2012. Lá, elas conheceram o nova-iorquino Archie Burnett, 57, professor e dançarino que vivenciou a explosão do estilo na cena underground da cidade. Jurado da competição, ele se revoltou com o fato de elas não terem vencido, e começaram ali uma parceria. No início de 2015, o trio ou um período em Nova York fazendo uma residência artística e vivenciando a “ballroom scene”, como é chamado o conjunto de festas no qual as disputas da dança acontecem. Na ocasião, foram hospedadas pelo próprio Archie.

Primeira 'ball' realizada no Rio de Janeiro, chamada 'Conferência das Bruxas', que contou com a participação do Trio Lipstick, de Belo Horizonte
Trio Lipstick, de BH, na primeira 'ball' realizada no Rio

O pioneirismo delas foi importante, inclusive, para a formatação do ballroom no Rio – algo que aparece em imagens de arquivo da ball Conferência das Bruxas, a primeira realizada em território fluminense. Além disso, o trio mineiro segue sendo apontado como referência para as iniciantes no voguing, como conta Pioneer Shau em uma entrevista exibida no filme. 

Juru, aliás, assinala que a capital mineira foi, por muito tempo, um ponto de difusão dessa cultura. “O BH Vogue Fever, um evento organizado por muitos anos pelo Trio Lipstick, em Belo Horizonte, teve um papel fundamental para a formatação da cena brasileira, sendo um espaço de troca e de aprendizado. Um lugar onde pessoas do Brasil inteiro iam anualmente para se encontrar e aprender a constituir essa cena, hoje é tão forte em vários outros Estados”, avalia.

Vale registrar, ainda, que outro ponto de confluência entre os dois Estados está no fato de houses retratadas no documentário – House of Império, House of Cabal, House of Bushido e Casa de Cosmos – possuírem capítulos (espécies de filiais) em Minas Gerais.