BRASÍLIA – Com a falta de recursos orçamentários, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) busca alternativas para avançar em seu trabalho. O colegiado tenta aproveitar a visibilidade do filme Ainda Estou Aqui, indicado em três categorias no Oscar, cuja cerimônia ocorre neste domingo (2), para encontrar soluções sobre outras questões relacionadas à reparação às famílias de vítimas da ditadura.

Recriada em julho de 2024 durante o governo Lula, a CEMDP, que retomou seus trabalhos oficialmente em 30 de agosto, recomendou ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a correção de certidões de mortos pela ditadura. A medida consta como uma das recomendações feitas pelo relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV). 

A CEMDP indica que em 407 dos 434 casos de mortes e desaparecimentos que a CNV confirmou em 2014, os termos lavrados nos documentos não refletem a real causa dos óbitos. O colegiado apontou que as certidões de óbito de 202 mortos durante a ditadura têm que ser corrigidas. 

Já os 232 desaparecidos durante o regime militar terão finalmente direito a um atestado de óbito. A medida exige que nas certidões conste a informação de que os desaparecimentos se deram de maneira “não natural, violenta e causada por perseguição política do Estado brasileiro”. 

Este foi o maior avanço dos familiares das vítimas da ditadura  desde a retomada da CEMDP. Até então, as certidões de óbito de mortos na ditadura só eram corrigidas após longas batalhas na Justiça. Agora, os familiares dos mortos e desaparecidos, catalogados pela CNV, receberão certidões de óbito de seus parentes atualizadas de graça. Os cartórios começaram a entregar os documentos em janeiro. 

O Ministério dos Direitos Humanos e a CEMDP também planejam uma cerimônia de pedido de desculpas oficial às famílias dos desaparecidos durante o regime. Não há uma data definida. A solenidade deve ocorrer em abril. Nela, os parentes de perseguidos políticos vão receber, além do pedido de desculpas, a certidão de óbito retificada. 

A aprovação da resolução do CNJ ocorreu em 10 de dezembro, quando se comemoraram os 76 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. “Embora nunca tenha havido um pedido formal de desculpas, como deveria ter havido, pelo menos nós, do CNJ, tomamos as providências possíveis de reparação moral dessas pessoas que foram perseguidas e sofreram o desaparecimento forçado”, disse o presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luís Roberto Barroso, durante a aprovação do ato.

‘Eu queria ter convivido com os meus pais’, diz filha de mortos na ditadura 

Um que teve o atestado de óbito corrigido foi Rubens Paiva. A primeira versão do atestado do documento do deputado cassado foi emitida em 1996, 25 anos depois do desaparecimento. O momento em que a esposa do ex-parlamentar, Eunice Paiva recebe o documento é encenado em “Ainda Estou Aqui”.

A advogada Iara Lobo, que mora em Brasília, espera o mesmo para os pais, o mineiro de Curvelo Raimundo Gonçalves Figueiredo, que desapareceu, em 27 de abril de 1971, quando ela tinha apenas dois anos, e Maria Regina Lobo Leite de Figueiredo, morta por agentes do Estado em 29 de março de 1972.

“Primeiro, tivemos que fazer um dossiê para comprovar que os meus pais morreram sob o controle, a mão do Estado. Agora há a possibilidade de a gente retificar os atestados de óbito. Já me pediram os documentos necessários e a gente deve receber os atestados em março”, conta Iara.

“Já sobre ‘Ainda Estamos Aqui’, o que mais me tocou foi a sensação de saudade do que não vivi. Eu queria ter convivido com os meus pais, ter visto os dois envelhecer. Tenho certeza que não foi uma perda só para mim, mas foi uma perda também para o país, mas o país nem se dá conta disso”, comenta a filha de Maria e Raimundo.

Raimundo era técnico em contabilidade e trabalhou no Banco Agrícola (depois, Banco Agrimisa), em Sete Lagoas, região Central de Minas Gerais. Nessa época, participou da Juventude Operária Católica (JOC). Tentou criar um sindicato na cidade. Considerado um “agitador”, foi transferido a Belo Horizonte e depois demitido. 

Ingressou na Ação Popular, depois participou na Ala Vermelha – uma divisão do PCdoB – e, na sequência, na Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) – grupo que usava táticas de guerrilha urbana pelo fim da ditadura militar. Raimundo foi dado como desaparecido em 1917, quando tinha 32 anos.

Como era perseguido pela ditadura, trocou de nome e cidade em algumas oportunidades, sendo conhecido também como José Francisco Severo Ferreira ou Francisco José Moura. Em uma de suas mudanças, para São Luís (MA), em 1966, conheceu sua mulher, Maria Regina Lobo, com a qual se casou no mesmo ano.

Militando na VAR-Palmares, tiveram duas meninas, Isabel, em 1967, e Iara, em 1968. Ainda em 1968, Raimundo foi torturado por 17 dias no Dops do Rio de Janeiro, mas acabou solto por meio de um habeas corpus. Mudou-se para o Recife e adotou outras identidades, como os nomes José de Moura e José Francisco Severo Ferreira.

Em 27 de abril de 1971, agentes do Dops entraram atirando na casa de Áurea Bezerra, em um bairro do Recife. Além dela e de seus dois filhos menores, estavam Arlindo Felipe da Silva e Raimundo Gonçalves de Figueiredo, ambos integrantes da VAR-Palmares. Áurea, Arlindo e Raimundo foram presos.

O regime divulgou que Raimundo reagiu à ordem de prisão, foi ferido e levado preso, mas morreu a caminho de um hospital. No entanto, Arlindo contou, anos depois, que os agentes separaram Raimundo dele e Áurea. Raimundo, que estava ferido na sala, foi encapuzado e colocado dentro de um carro. Ele nunca mais foi visto.

A CNV concluiu, por meio da ficha datiloscópica de Raimundo, que ele morreu “em decorrência de ação perpetrada por agentes do Estado brasileiro, em contexto de sistemáticas violações de direitos humanos promovidas pela ditadura militar”, refutando a hipótese de que ele teria iniciado um tiroteio por resistência à prisão.

Já Maria Regina, a esposa de Raimundo, morreu em 29 de março de 1972 no episódio conhecido como Chacina de Quintino, durante operação policial em uma casa onde estavam integrantes da VAR-Palmares, em Quintino, no Rio de Janeiro. VAR-Palmares era um dos grupos que usavam táticas de guerrilha urbana pelo fim da ditadura militar.

A ação foi organizada por agentes do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) do I Exército, com apoio do Departamento de Ordem Política e Social do Estado da Guanabara (Dops/GB). Os órgãos foram criados para combater supostos inimigos do regime ditatorial.

Após cercarem o imóvel, os agentes entraram atirando. Com Maria Regina, foram mortos outros dois integrantes da VAR-Palmares: Antônio Marcos Pinto de Oliveira e Lígia Maria Salgado Nóbrega. James Allen Luz, militante da mesma organização, conseguiu escapar do cerco. 

A versão oficial divulgada à época sustentava que Maria Regina morreu ao reagir. Contudo, as investigações indicam que nenhum dos três mortos tinham resíduos de pólvoras nas mãos, o que confirmava os depoimentos de vizinhos à Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-RJ).

Os moradores de Quintino que eram vizinhos da casa à época das mortes relataram que policiais já estavam no bairro desde o fim da tarde de 29 de março, preparando a operação que ocorreria à noite. Os moradores afirmaram ainda que os barulhos dos disparos não vieram de dentro da casa, mas do lado de fora, onde estavam os agentes.

O corpo de Maria Regina deu entrada no Instituto Médico-Legal (IML) como desconhecido em 30 de março. A família só soube da morte em 5 de abril. Os restos mortais dela foram enterrados no cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro.